A ecologia política da Amazônia exige que voltemos um passo antes da técnica para interrogar os modos pelos quais aprendemos a ver a natureza e a ver uns aos outros. Durante a formação em biologia, acostumamo-nos à linguagem das leis, das variáveis e do “erro” estatístico. Em laboratório, a variação é ruído a ser controlado; na vida, porém, a variação é regra constitutiva. A diferença não é apenas metodológica: ela denuncia uma ontologia. Quando passamos do animismo e do totemismo — em que rios, florestas e animais são pessoas, parentes e coautores do mundo — para a racionalidade instrumental ocidental, instituímos uma separação entre sujeito e objeto que torna a natureza coisa obediente, mensurável e manipulável. Essa chave cognitiva sustenta o avanço da ciência moderna, mas também o fetichismo da mercadoria, o extrativismo e as rotas pelas quais a crise ambiental se converte, hoje, em crise civilizatória.
Chamar de “ecologia política” o estudo dessas questões não é simples soma de temas. Ecologia, por si, trata das relações entre seres e ambientes; política, da arte de habitar a polis — gerir conflitos, pactos e indiferenças entre pessoas. A ecologia política interroga quem define a natureza, com que ideias, a mando de quais interesses e com quais consequências distributivas. É, portanto, um campo que põe lado a lado cosmologias (biodiversidade, Pachamama, Gaia, biosfera) e arranjos de poder (estados, mercados, comunidades), reconhecendo que cada modo de imaginar a natureza abre e fecha possibilidades de uso, de cuidado e de violência.
A modernidade europeia condensa esses deslocamentos. A revolução científica consolidou a causalidade e a lógica meios-fins como gramática de inteligibilidade do real; a expansão ultramarina e o capitalismo transformaram mundos em circuitos de mercadorias. Marx mostrou que a mercadoria é forma social que encobre as relações de exploração, inclusive a mercadoria-trabalho fabricada pela escravidão moderna. Weber observou como certas instituições e éticas — notadamente a protestante — forjaram sujeitos disciplinados, calculistas e metódicos, afinados com a acumulação. Durkheim, por sua vez, indagou como a coesão social se recompõe (ou se rompe) em meio à diferenciação moderna. O ponto é que ciência, religião, economia e direito não operam em compartimentos estanques: são engrenagens de uma mesma máquina civilizatória que aprende a tratar o mundo como reserva infinita para projetos de domínio.
No espaço amazônico, a primeira modernidade abriu-se como fronteira mercantil. Desde o século XVII, Belém tornou-se entreposto de circulação de açúcar, pau-brasil e “drogas do sertão”. O regime de aviamento, alimentado pelo endividamento e, antes dele, pela escravidão africana, articulou o comércio de longa distância a uma economia extrativa de base florestal. A borracha é o emblema dessa ordem: sua ecologia — árvores dispersas, produção sazonal, necessidade de deslocamentos longos — empurrou o sistema para formas predatórias de exploração do trabalho e do ambiente. A segunda modernidade, industrial, não substituiu esse padrão; apenas o potencializou com o motor a vapor, a motosserra, a retroescavadeira e a logística de grandes volumes. Manaus, primeiro enriquecida pelo ciclo da borracha e depois reconfigurada pela Zona Franca, expressa a ambivalência: modernidade técnica concentrada na capital, baixa difusão territorial, interior mantido como hinterlândia extrativa e consumidor de mercadorias importadas.
O fracasso de Fordlândia é lição paradigmática. A tentativa de impor monocultura de seringueira ao estilo do agronegócio industrial encontrou pragas para as quais o arranjo ecológico florestal tinha respostas próprias (dispersão das árvores, heterogeneidade, mosaicos), mas que a racionalidade padronizadora recusou ver. Somam-se as doenças tropicais em cidades operárias desenhadas contra os conselhos do ambiente. A imagem é direta: quando a técnica ignora a ecologia, o sistema vivo devolve a conta. O mesmo vale para outras cadeias: a exploração do açaí pelo palmito mata as palmeiras e desertifica a renda; já o manejo do fruto sustenta a planta, diversifica usos e distribui benefícios. No garimpo, o mercúrio acelera o ganho privado enquanto socializa contaminação e doença; tecnologias sem mercúrio existem, mas exigem outra temporalidade, outra infraestrutura e outro pacto social. Em todos os casos, escolhas técnicas são escolhas políticas encapsuladas.
A crise que hoje nos atravessa não é só do clima, da água, da biodiversidade; é da própria gramática civilizatória que nos ensinou a ver sementes como “unidades replicáveis”, pacientes como “casos”, estudantes como “recipientes” e florestas como “estoques”. O que retorna como desmatamento, eventos extremos, epidemias e injustiças é o efeito cumulativo de um mundo organizado para otimizar meios em direção a fins estreitos e de curto prazo. Não se trata de negar a ciência — sem a qual sequer reconheceríamos a magnitude dos danos —, mas de recuperar outros regimes de relação com o vivo capazes de temperar a racionalidade instrumental com vínculos de reciprocidade, cuidado e limites.
Nesse ponto, a educação torna-se alavanca. Pesquisa e extensão, sozinhas, não alteram práticas se não houver sujeitos aptos a traduzir entre as linguagens do laboratório e as dos territórios, entre a curva dose-resposta e a história das comunidades, entre o planejamento logístico e as ontologias indígenas, ribeirinhas e quilombolas. A ecologia política propõe esse ofício de ponte: aprender a teoria social clássica não como dogma, mas como ferramenta; reaprender as cosmologias locais não como “folclore”, mas como inteligência ambiental; requalificar a tecnologia não como fetiche, mas como arte de adequação. Isso implica também treinar o olhar para ler as controvérsias públicas: reconhecer, numa matéria de jornal, quem fala pela biodiversidade e quem fala pela mercadoria; rastrear fluxos de poder, de financiamento e de risco; distinguir manejo de espoliação; valorizar experiências de economia do cuidado que, silenciosamente, já produzem sustentabilidade real.
A pergunta que nos guia — como queremos viver? — desloca o debate do “que explorar e com que eficiência” para “que relações queremos sustentar e com que responsabilidades”. O animismo e o totemismo não são, aqui, passados a serem romantizados, mas lembranças de que é possível habitar o mundo como parente, e não como proprietário. A racionalidade instrumental não precisa ser descartada; precisa ser situada e contrabalançada por cosmologias que reconhecem agência, interdependência e limites. Talvez a Amazônia ainda exista, em parte, porque nunca foi totalmente subordinada ao ideal de uniformização; porque sua ecologia resiste à monocultura e porque muitas de suas gentes, apesar de pressões seculares, preservam redes de reciprocidade e conhecimento. Cuidar desse resto ativo não é nostalgia: é condição de futuro.
Se a modernidade nos deu ferramentas potentes, cabe-nos agora refinar a “peneira” com que filtramos seus usos. Um tecido intelectual mais denso — no qual biólogos leem Weber, sociólogos estudam ecologia, engenheiros reconhecem cosmopolíticas indígenas — pode carregar pesos maiores sem rasgar. O que está em jogo não é um ajuste técnico, mas uma mudança de relação: transformar a ciência de instrumento de extração em prática de aliança; transformar políticas públicas de comando-controle em arranjos de co-gestão; transformar mercados de mercadorias indiferentes em economias situadas, cuidadosas e reparadoras. É nesse território — entre saber, poder e pertencimento — que a ecologia política da Amazônia encontra sua tarefa.
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